quinta-feira, 11 de julho de 2013

João Filgueiras Lima, Lelé: Entrevista revela o descontentamento do famoso arquiteto com o atual cenário profissional - ARCOweb



João Filgueiras Lima, Lelé

Entrevista revela o descontentamento do famoso arquiteto com o atual cenário profissional


A criação de uma Oscip parecia a João Filgueiras Lima o meio ideal para, próximo aos 80 anos de idade, implantar seu grande projeto de vida: unir escola, fábrica e ateliê numa só engrenagem, na qual o arquiteto coordena projeto e obra. Mas desgaste, no fim, é o termo utilizado por Lelé para sintetizar a batalha de meia década do IBTH contra uma muralha de normas que favorece os poderosos da construção civil brasileira. Problemas com a obra do TRT baiano, em curso, e o arquivamento sumário do seu projeto - não remunerado - para o Minha Casa, Minha Vida são o pano de fundo desta entrevista.
O tom pessimista tem predominado nos pronunciamentos de Lelé no último ano e meio. Não é para menos. Mesmo com a experiência acumulada em mais de seis décadas de atuação - desde Brasília, passando por todas as unidades dos hospitais da Rede Sarah e as fábricas de componentes metálicos e de argamassa armada com que construiu escolas, creches, prefeituras, pontes e tantos equipamentos -, a alegação de falta de notoriedade do saber e a inadequação aos procedimentos legais de financiamento e gestão de obras públicas, inacessíveis às Oscips, causaram o insucesso dos projetos do Instituto Brasileiro da Tecnologia do Hábitat (IBTH), criado há cerca de cinco anos para projetar, construir e gerir obras na esfera pública.
O cancelamento do contrato de gestão da obra do TRT baiano, pelo Tribunal de Contas da União, e o trabalho voluntário, por comprometimento ético, ou sem retorno (vários projetos do instituto, independentemente do grau de desenvolvimento a que chegaram, não foram contratados) são peças do jogo de desilusão que afligiu o arquiteto.
Esperamos que as sessões matinais ao piano e o sucesso na execução do contrato assinado no começo de 2013 com a Secretaria de Estado da Cultura da Bahia para, enfim, comandar projeto e obra de uma passarela que, no centro de Salvador, pretende reintegrar as cumeeiras de morros deem novo alento ao grande arquiteto.
Projeto para a fábrica do IBTH, que não chegou a sair do papel
Projeto para a fábrica do IBTH, que não chegou a sair do papel
Tanto quanto o prazer de circular por suas experiências de pré-fabricação no Centro Administrativo da Bahia, em Salvador, onde, ao lado da bela igrejinha, do digno TRE e seu anexo e das várias secretarias suspensas sobre um esqueleto central de pilares de concreto, figura isolada a obra do primeiro prédio redondo, do total de oito, para o TRT/5ª Região.


O IBTH foi criado após o fim da era dos hospitais da Rede Sarah. Qual era o seu projeto?
Criamos o IBTH há cinco anos. É uma Oscip [organização da sociedade civil de interesse público], sem fins lucrativos, aprovada pelo Ministério da Justiça. O objetivo era manter contratos com o governo em áreas de desenvolvimento tecnológico e social, desenvolvendo projetos, obras públicas e dando suporte ao ensino. Tentamos criar uma fábrica, baseada em nossas diversas experiências anteriores com argamassa armada e estrutura metálica, processos, enfim, que permitem baixar os custos e melhorar as obras públicas. Mas acabei chegando à conclusão de que a Oscip é inviável.
Por quê?
De que adianta conceber o projeto sem gerir a obra? Que suporte podemos dar ao ensino se a construção estiver fora do nosso escopo de trabalho? O instituto queria que o arquiteto retomasse a sua postura de gerenciador e de mestre de obra. É um generalista, como fomos nos projetos do CTRS [Centro de Tecnologia da Rede Sarah], acompanhando a implantação dos hospitais para corrigir e ajustar o que fosse necessário. Por outro lado, também as Oscips se desmoralizaram por causa da corrupção. Não adianta criar uma lei que, no final das contas, a realidade destrói. Acho, então, que o momento não é mais propício para essa proposta.
O arquiteto cedeu muito. Na época em que me formei ele tinha uma autoridade incrível sobre as obras. Não fosse isso, Brasília não teria sido construída
O que aconteceu?
Conseguimos um terreno do governo para implantar a fábrica no setor industrial. Enquanto isso, passamos a trabalhar em anteprojetos que atendiam solicitações do próprio governo e a alinhavar os convênios com as três esferas, que são a razão de existência da Oscip. Foram mais de 20 sugestões de projetos, alguns desenvolvidos com muita profundidade, mas que acabaram não acontecendo.
Que projetos eram esses?
A presidente [Dilma Rousseff], por exemplo, nos pediu um projeto para melhorar tecnicamente o programa Minha Casa, Minha Vida. E acabamos investindo muito nesse trabalho.
O senhor, então, trabalhou antes de ser contratado?
Aconteceu o tempo todo, sendo que o Minha Casa, Minha Vida foi até o executivo, com detalhamento de fábricas e tudo o mais. Era uma proposta geral, para o Brasil, que transformava a execução dos prédios num processo industrializado, com o objetivo de melhorar a qualidade e diminuir os custos. O Estado já pagava para as empreiteiras cerca de 45 mil reais por unidade; nós chegamos a um custo de 26 mil.
De quanto tempo de trabalho estamos falando?
Três anos, com 30 a 40 pessoas trabalhando comigo. Hoje são três funcionários.
A integração reduz uma série de serviços na obra, o processo industrial é racional, algo que se perdeu hoje. A arquitetura se transformou numa série de frankensteins
Com que recursos elas foram pagas?
Principalmente com a remuneração do projeto do TRT [Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador].
Era a mesma equipe, então, para os dois projetos?
Sim, todos eram funcionários do instituto.
Tentaram obter a contratação para a obra do TRT?
As direções do TRT e da Caixa Econômica Federal se mostraram favoráveis, mas esbarraram na legislação. A única obra que conseguimos resolver da maneira como queríamos foi a do Memorial Darcy Ribeiro, lá em Brasília [leia PROJETO DESIGN 375, maio de 2011].
O senhor sofreu algum processo por causa do projeto do TRT?
Não. O que houve foi que o TCU contestou o nosso contrato de fiscalização, que já havíamos assinado, porque eles acharam que não tínhamos notória especialização para essa tarefa. Não é algo pessoal, contra mim, isso sempre aconteceu, até com Oscar [Niemeyer] em Brasília. Estipularam, então, que outra empresa fosse licitada para gerir a obra, e o nosso contrato foi cancelado.
Qual a diferença entre fiscalização e gestão?
Até chamávamos de fiscalização, mas a gestão implica autoridade maior sobre a obra. No caso do TRT, por exemplo, nós é que autorizávamos as faturas de pagamento, mas eles têm também a sua fiscalização própria, ou seja, há dois organismos envolvidos na mesma tarefa. O empreiteiro consegue com muita habilidade provocar um atrito esses dois administradores de obra, e acaba prevalecendo a decisão do TRT.
Qual a dificuldade para efetivar os convênios do IBTH?
Colidimos com os interesses das empreiteiras. Por isso, no caso do TRT, por exemplo, já imaginávamos que não sairia o convênio da obra. O outro obstáculo foi a relação com a CEF, que tem um programa formatado para se relacionar com os empreiteiros, não com a nossa Oscip. Apesar do interesse da Presidência da República e da própria presidência da Caixa, nossa atuação foi inviabilizada pelo Tribunal de Contas da União. Chegamos, então, à conclusão de que a Oscip não funciona. Foi um processo muito desgastante, inclusive em termos de investimentos. Consumimos todas as nossas reservas nesses projetos.
Que reservas?
Tínhamos alguns pagamentos de projetos que fizemos, como o do TRT, que nos deram certo suporte. Mas, mesmo assim, chegamos a um ponto em que o instituto não tinha condições de sobreviver, minha reserva pessoal tinha se esgotado.
O instituto não existe mais?
Ele ainda está vivo, não morreu definitivamente. Não pode fechar porque precisamos acompanhar a obra do TRT, mesmo que nosso contrato seja só de projeto e o executivo já esteja pronto. Temos o compromisso ético de acompanhar a obra, porque as empreiteiras são muito mal preparadas. É um milagre estar pronto o primeiro edifício. Então, há ainda uns três anos de trabalho pela frente.
E o que aconteceu com a obra da fábrica do IBTH?
Gastamos muito dinheiro com o movimento de terra, até que conseguimos deixar o terreno pronto para a construção. Mas tivemos que devolvê-lo.
O senhor tinha verba para construir essa fábrica?
Minha, pessoal, e de outros projetos.
Era o reinvestimento preconizado pelo estatuto da Oscip?
Só pode ser assim, o patrimônio de uma Oscip não é pessoal, é público. O termo que assinamos para a fábrica era de uma concessão de uso, por 20 anos. Enfim, foram muitos os obstáculos, e isso tudo, infelizmente, se mistura um pouco com a minha história pessoal. Não é o objeto desta entrevista, mas se não estiverem a par disso deixam de entender uma parte do problema. Tenho câncer, tanto desgaste provocou uma metástase no meu fígado. Depois de um ano afastado, só agora voltei a trabalhar integralmente.
Desgaste relativo a algum projeto especificamente?
O TRT foi um desgaste terrível. A empresa contratada para a construção do primeiro edifício [de um total de oito] estava completamente despreparada para a obra. A administração pública, de modo geral, se enfraqueceu muito, pela forma com que são feitas as eleições, com a participação tão eficiente das grandes empresas. Acho que existe um contexto aí, da globalização, que nos deixa reféns de interesses econômicos que movem a construção civil.
Qual a força do arquiteto frente a isso?
Nenhuma, e esse é o outro grande obstáculo. O arquiteto cedeu muito. Na época em que me formei ele tinha uma autoridade incrível sobre as obras.Não fosse isso, Brasília não teria sido construída. Hoje, as grandes empresas ditam as obras, e mesmo os fornecedores pressionam no sentido de fragmentar mais ainda o processo de construção. É uma colcha de retalhos, gerida pelo engenheiro.
O desenvolvimento tecnológico, principalmente, gerou a crise da fragmentação do conhecimento. Só quando as atividades envolvem fortunas, como na Fórmula 1, é que há ainda a integração
Um dos pilares do IBTH seria gerenciar obras. Em certo momento, contudo, o senhor percebeu que era um sonho intangível.
Você está percebendo bem as coisas.
Qual o problema com o controle das obras pelo TCU?
O TCU e a CGU [Controladoria Geral da União] são executores de normas. Mas norma não é lei. Eles usam o Sinapi [Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil] para formatar os orçamentos, o que não corresponde à realidade industrial. Então, para você ter ideia, a obra do Memorial Darcy Ribeiro tinha um orçamento muito baixo, baseado nos nossos dados de apropriação de custos. Eles [TCU] não aceitaram, e tivemos que refazer todo o orçamento numa base que elevaria em 600 mil reais o custo da obra. Isso está lá com eles. Esse posicionamento é falso, o Sinapi não serve para um processo industrializado, em que há a atuação simultânea de todas as pessoas. Mas o raciocínio deles é fragmentado, pensam num somatório de coisas que não corresponde à realidade. A integração reduz uma série de serviços na obra, o processo industrial é racional, algo que se perdeu hoje. A arquitetura se transformou numa série de frankensteins.
O projeto da passarela do centro de Salvador, que o traz de volta ao IBTH, terá um destino diferente?
É um daqueles projetos que eu tinha feito no início da Oscip. Fortaleceram agora o papel do instituto, e assinamos há um mês o contrato para a gestão da obra. Estamos, então, desenvolvendo [para a Secretaria de Estado da Cultura da Bahia] o projeto de forma integrada, como deve ser. Assim, nós podemos aceitar o trabalho.
Foi uma vitória?
Acho que sim. E podemos trazer de volta o grupo do [Centro Tecnológico Rede] Sarah, como um todo. Os operários, os mestres de obras... Eles se acostumaram à nossa forma diferente de construir.
O que é o CTRS hoje? Foi desmontado?
Não, está todo aqui [em Salvador]. Fisicamente continua o mesmo. O pessoal é que diminuiu, faz apenas a manutenção dos hospitais. Assim é que se mantém o CTRS vivo. Os funcionários do CTRS ainda têm a expectativa de voltar a trabalhar como antes.
Há espaço para a industrialização leve, ainda hoje?
Totalmente. Eu posso provar que sim. O orçamento do Minha Casa, Minha Vida é baseado numa experiência enorme. Cada unidade custaria realmente 26 mil reais, se não entrasse em jogo uma gestão fraudulenta. Mas lobbies que dirigem a construção civil geraram referenciais que não nos interessam. Há um monte de normas de outras realidades, que exigem o uso de produtos mais caros, com a proliferação, por exemplo, de vidros com espessuras brutais. Brasília foi feita com vidros de no máximo seis milímetros. Precisamos falar sobre essas normas bandidas. Rampa de no máximo 8,33%, com patamares a cada um metro e meio? Salvador não dá para isso. Trata-se de uma norma internacional que imagina uma cidade plana. Oscar, por exemplo, sempre fazia rampa de 15%. A relação era um para sete, e pronto. Vamos derrubar os palácios?
Falando sobre a indústria da construção, qual a sua opinião sobre a licitação por menor preço?
É uma monstruosidade, uma forma de desqualificar a construção, o projeto e a própria arquitetura. Estamos vivendo um processo de degradação - esse é o termo - da produção arquitetônica, em que as pessoas começam a receber pró-labore de empresas para especificar coisas. O CAU tem que atuar contra esse problema ético.
De que adianta conceber o projeto sem gerir a obra? Que suporte podemos dar ao ensino se a construção estiver fora do nosso escopo de trabalho?
sistematicamente, o que nos levou a essa situação?
Principalmente a globalização e a valorização do lucro, em todas as atividades humanas. Antigamente as empresas da construção tinham interesse de fazer boas obras, que as credenciavam a continuar construindo. O poder público valorizava as empresas que construíam melhor.
Isso o senhor vivenciou, não?
Sim, em Brasília. Mas hoje o bom empreiteiro é aquele que lucra mais. O desenvolvimento tecnológico, principalmente, gerou a crise da fragmentação do conhecimento. Só quando as atividades envolvem fortunas é que há ainda a integração.
A arquitetura ainda é capaz de induzir alguma transformação positiva do mundo?
As creches são fundamentais, mas as prefeituras não têm a menor condição de gerir este programa. É um equívoco dar dinheiro ao município para esse fim. Conversei muito com a presidente Dilma sobre isso e acho que ela está percebendo que as creches não estão acontecendo.
Foi o senhor que pediu essa reunião?
Não, ela que me chamou. Estava ainda com a ideia de usar o CTRS para produzir as creches. Mas adivinha só? Esbarrou no TCU. Ela achou que poderia deflagar o processo com o CTRS, mas o TCU não deixou.
Qual a alegação do TCU?
A mesma alegação burra de sempre: afirmar que nosso processo de industrialização pode ser dominado por qualquer empreiteiro, que não existe notória especialização desse grupo. Sua justificativa é uma graça, ainda mais quando se pensa que o órgão fez, para si mesmo, com o CTRS, umas oito construções.
Quando?
Há uns 20 anos, na época em que o [Marcos] Vilaça era o presidente do TCU. Ele achava importante, até como forma de atualizar os técnicos do TCU, que o CTRS promovesse esse conhecimento da construção industrializada.
Qual a sua opinião sobre o notório saber?
Acho que se justifica. Se você pensar bem, mesmo quando se convida um júri se procede ao notório saber. Então, ele existe. Não acho que isso elimine o concurso de arquitetura, mas em Brasília, por exemplo, os prédios da faixa administrativa da cidade precisavam de uma identidade, era caso de notório saber mesmo, nem tem o que discutir. Nosso instituto também é caso de notório saber. Eu, pelo menos, não conheço uma experiência similar de fábrica, de processo criativo como a nossa, que vai desde o início do projeto até a instalação do prédio.
O senhor vai continuar visitando as obras do TRT?
Sim, mas espero que eles façam um contrato. Ninguém pode viver só de comprometimento ético, tem que comer também.
Por Evelise Grunow
Conteúdo extra de matéria publicada originalmente em PROJETODESIGN
Edição 397 Março de 2013

Obra do Centro Administrativo da Bahia
Obra do Centro Administrativo da Bahia
Secretaria do Centro Administrativo da Bahia
Secretaria do Centro Administrativo da Bahia
Passarela do Centro Histórico de Salvador
Projeto para a passarela do Centro Histórico de Salvador
Fábrica do Rio de Janeiro, década de 1970
Fábrica de componentes (já extinta) do Rio de Janeiro, década de 1970, durante a construção dos Cieps
Fábrica do Rio de Janeiro, década de 1970
Fábrica de componentes (já extinta) do Rio de Janeiro, década de 1970, durante a construção dos Cieps
Projeto da sede do IBTH
Projeto (não executado) para a sede do IBTH, em Salvador
Projeto da sede do IBTH
Projeto (não executado) para a sede do IBTH, em Salvador
Projeto da sede do IBTH
Projeto (não executado) para a sede do IBTH, em Salvador

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